Suas vergonhas e a vergonha propriamente dita
- Rebecca Souza

- 26 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de mar. de 2022

"Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão çarradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha."
Sem nenhuma sombra de dúvida, você, estudante brasileiro, já viu esse trecho da Carta a El-Rei D. Manuel, de Pêro Vaz de Caminha, em alguma aula de história, de língua portuguesa ou em alguma questão de prova, vestibular ou Enem.
A vergonha não é falar sobre as vergonhas, porque, de fato, elas estavam lá mesmo, diante dos portugueses recém-chegados. A vergonha propriamente dita é fazer questão de nos lembrar apenas desse pequeno trecho da obra.
Além do meu incômodo com esse fato, tive um outro motivo para querer conhecer mais sobre essa obra: essa carta é o primeiro registro escrito realizado sobre o meu país no meu país. Mesmo que tenha um caráter mais documental do que literário, é uma obra importantíssima para nós, brasileiros, tanto como povo, quanto cidadãos.
A respeito desse caráter da obra, há algo intimamente relacionado a seu autor que precisa ser conhecido:
"Não é Pêro Vaz um experimentado homem do mar - nem o quis ser -, nem um político, e, por este lado, pouco tirará dele o historiador das descobertas, mas um cronista atento a tudo o que se passa no contacto com a terra e a a gente, que magistralmente descreve, com o rigor do funcionário que lidava com factos e números, com a sabedoria do humanista que conhece e domina a sua língua, com a rara aptidão do apurado observador, com o fino talento de escritor, enfim, com a profunda e humana simpatia que nele despertou o novo homem dos trópicos. E tudo visto e reflectido e escrito em pouco mais de uma semana de intermitentes e relativamente breves contactos com a população do país."
Conforme minha leitura ia avançando, pude perceber como é verdadeiro esse trecho da introdução do livro. Aliás, uma das coisas que mais me despertou a curiosidade durante a leitura foi o fato de que Pêro é extremamente detalhista quando descreve as pessoas, mas com relação ao cenário natural, suas descrições são inexistentes, o que se têm são apenas as nomes comuns dos lugares e alguma característica simples que merece ser relatada: praia, água muito boa, ilhéu, palmas não muito altas, terra chã com grandes arvoredos...
Ao descrever as pessoas e seus comportamentos, Pêro consegue captar belos momentos da breve convivência entre portugueses e índios. Dentre os homens que vieram na nau de Pedro Álvares Cabral, um deles chama-se Diego Dias, irmão de Bartolomeu Dias. Conhecido por ser alegre, Diego Dias não escapou ao olhar atento do autor:
"E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diego Diis*, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito."
*Transcrição do nome de acordo com a edição da obra. Vide a referência no final do post.
Relatos como esse demonstram que o espírito humano é capaz de ultrapassar qualquer tipo de barreira. Dois povos completamente diferentes que não falavam a mesma língua tiveram um encontro como esse.
Talvez, neste momento, você pense que estou tendo uma visão generosa demais com esse fato histórico, mas se você pensar um pouco sobre todos os outros encontros entre povos desconhecidos que ocorreram ao longo da história, será fácil perceber que poucos foram tão pacíficos quanto esse.
(continua...)




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